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semasas

mas no processo de crescimento perdêmo-las.

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11.08.08

Monstros - Parte III


Sem Asas

 Encontrava-se num planalto, a meio caminho do cimo da montanha. Depois de três dias sozinha na montanha tentando descobrir onde se escondia o monstro, estava cansada e começava a ficar farta. A aventura não tinha tanto gosto quando estava só... Para mais, as provisões começavam a escassear e teria de caçar, o que ia reduzir o tempo de procura. 

A hora do pôr-do-sol estava próxima. Receava essa hora, era quando os gritos do monstro se ouviam. Na aldeia, não fora difícil de disfarçar, mas na natureza, era mais fácil de acreditar nas lendas que corriam acerca do monstro. E mais assustador... como que ligados aos seus pensamentos, os uivos fizeram-se ouvir. E mais perto do que estava sinceramente à espera. Dividida entre o medo e a curiosidade, avançou com precaução até que encontrou a origem os uivos. A descoberta fê-la estancar. 
Sentado num rochedo, à beira de um rio que corria entre as árvores, encontrava-se uma figura humana. Com a ligeira diferença que era uma figura humana de estatura enorme, com a braços enormes e peludos. Mas o que a fez estancar em vez de atacar a criatura é que esta chorava a plenos pulmões, dando largas a uma tristeza palpável a metros de distância. Sendo uma mulher de armas, habituada a lutas e a ter que se afirmar num mundo de homens, Ariana não estava habituada a chorar. Mas deu consigo a fazê-lo, mesmo sem querer, as lágrimas corriam sem as poder controlar... e pela primeira vez na sua vida, sem saber muito bem porquê, deixou-se ir, baixou as guardas e chorou. Chorou por todas as razoes e por nenhuma, pelas coisas que deviam ter acontecido e não haviam, pelas coisas que tinham acontecido e não deviam. E chorando, escorregou lentamente para o chão, encostou-se ao rochedo e deixou-se ficar. 
Torg voltou-se ao ruído inesperado e encontrou aquilo que não estava à espera. Que de vez em quando encontrasse heróis que o tentavam matar não o surpreendia, mas uma mulher que vinha e se punha a chorar era novidade. E precisamente por isso, não a atacou. Ariana, de seu lado, fez o mesmo. E dois seres, que deveriam ter sido inimigos, encararam-se perguntando-se se eram de facto inimigos. E cada um pôs de lado a natureza bélica por um instante e esse instante foi decisivo. 
Tiveram uma conversa que durou toda a noite. E quando o sol nasceu, Ariana sabia a triste história da vida de Torg, e este sabia a razão pela qual ela se tinha tornado guerreira. Mas desaparecida a razão, que ia ela agora fazer da sua vida? Foi esta a questão que ele lhe pôs. E ela, pouco segura (porque é sempre assim que nos sentimos quando começamos uma nova fase da nossa vida), respondeu com uma pergunta: “aceitas que comece uma nova aventura... contigo?” 

E foi assim que os aldeões deixaram de temer o monstro e que Ariana nunca voltou da montanha.

04.08.08

Monstros - Parte II


Sem Asas

Ele sentia-se sozinho. Tão sozinho... Nos belos dias de sol era ainda pior. Toda a natureza vibrava de prazer, mas ele escondia-se em sua casa, fechava a porta e tentava não recordar. Mas recordava... memorias de dias felizes perseguiam-no, faziam-no sofrer. Imagens fugidias, sons que vinham do passado e perduravam apenas o tempo suficiente de o fazer sofrer ainda mais. Ter mudado de morada não tinha ajudado. Fora viver para o outro lado da Montanha, sem resultado. De resto, da sua raça já não havia muitos e estavam demasiado dispersos para fazer face à ameaça do povo pequeno. Por isso, quando a sua mulher e o seu filho tinham sido mortos, ele nada fizera. Voltara as costas e mudara de sítio para não encontrar a mesma sorte.
Segundo as lendas do seu povo, gigantes e povo pequeno sempre se tinham dado se não bem, pelo menos amigavelmente. A Montanha era território de gigantes, o resto território do povo pequeno, pois estes multiplicavam-se mais depressa e precisavam de terras. Cada qual no seu território, sem problemas de maior. Até que um dia, um rei do povo pequeno inventou que os gigantes tinham raptado uma donzela. Obviamente, os gigantes não tinham interesse em donzelas que lhes davam pelos joelhos, por muito belas que fossem. Mas o povo pequeno levou isto a sério. E passou a considerar os gigantes como inimigos, e passou a ataca-los quando havia oportunidade. E foi ai que a população de gigantes, já de si não muito grande, começou a diminuir. Claro que eles ripostaram. Mas o que fazer? Mesmo sendo pequenos eles eram demasiados e onde um tombava outro tomava rapidamente o seu lugar. A solução fora refugiar-se mais profundamente na Montanha, cavando túneis e estabelecendo defesas, estabelecendo moradas de pedra.
Torg nascera numa dessas caves. Crescera lentamente, mas atingindo a altura de um gigante adulto encontrou uma outra gigante e formaram uma família. Nessa altura já havia poucos gigantes na Montanha, mas quando o primeiro filho nasceu, eles eram os únicos. Mas viviam felizes ainda assim. Ele tratava da sua horta (de onde retiravam o seu sustento) e caçava, ela tecia tecidos coloridos com os quais se vestiam. E fora num dia assim, pleno de sol, que o povo pequeno tinha aparecido. Torg tentou defender a mulher e o filho, mas uma vez mais estavam em desvantagem: eles eram demasiados. Viu a mulher sem assassinada sem piedade, por tentar defender o filho. Viu o filho falecer nos braços frios da mãe. E viu o sol desaparecer na linha do horizonte, quando pensava que estava a fechar os olhos pela última vez, esperando que a morte o levasse a ele também.
Mas não levou. Por alguma ironia do destino, ele ficara para trás. E vivia agora uma vida sem sentido, do outro lado da Montanha. E agora, quando eles vinham, matava sem pensar. Até ao dia em que a morte decidisse leva-lo finalmente para junto da sua família.